9 de dez. de 2006

Lanche depois das onze

Antes tivessem sido meus ossos todos fraturados. Pisoteados. Moídos. Incinerados. Lã de carneiro vedando olhares. Cera da Índia tampando sussurros. Não consigo servir em copos o vinho que nos entorpece a mente. Cândida nuvem do céu pós-dilúvio. Linha vermelha onde me escondo. É Brisália. Esse céu me lembra Brisália.

A consciência mais me parece um bate-estacas (expressão em homenagem ao soldado) a me condenar: “bem-feito”, “bem-feito”, “bem-feito”, “bem-feito”. E foi bem-feito mesmo. Meu dique particular preste a se romper. E romperá, chegando no limite da TV em cores que já se apagou e não pagou. Venha, venha, venha sonhar comigo.

Pago um preço muito caro por não fazer concessões. Com a única certeza da única possibilidade no beco lusco-fusco onde pichara meu nome sobre o nome de alguém que finjo desconhecer quando encontro na rua. Kant e o Guerreiro eram namorados. Todos diziam. Galhofas de adolescentes. E éramos mesmos, mas não sabíamos. No máximo, troca-troca. Os Colibris dos Alpes. Viciados em pastilhas coloridas. Azuis lhes facilitavam a felicidade. As vermelhas lhes acalmavam. As verdes de praxe impulsionadoras e as cor-de-rosa, tradução do amor. O drama transformado em tragédia. Três atos. Do meio para o final; ou tudo fragmentado, entrecortado. Ainda não me decidi.

Tampouco decidi, se vou narrar a vitória do macho velho que acabou de despejar-se sobre mim. Mingau de maisena, bebê. Toma que é nutritivo. O dedão do meu pé passeando por uma boca que ora me beijava. Viu porque compensa deixar uma fortuna no podólogo? Nunca adivinho quando o cão aparecerá para marcar seu território. Carece de exatidão. Ele não liga. Pára em frente ao comércio e buzina. A cadela aqui vai correndo abanando a longa cauda castanha felpuda. Digo cadela, porque ele faz do braço uma coleira em volta do meu pescoço e se me enforca, é um detalhe que eu sempre suprimo quando caminho de volta para casa. Volta caminhando? Sim. Não me permito incomodá-lo quando acende o cigarro. É um outro homem escondido atrás da densa fumaça que odeia ser incomodado quando se perde em devaneios. Não o reconheço.

Vou caminhar um pouco. Encontro dois conhecidos, na calçada construída à margem do Lago. Cheio, florido, habitado e navegável. Arqueado, os conhecidos. Eles passam por mim. A esperança das horas. Há tantos barcos a passear pelas águas frias do mesmo lago que sinto vontade de... Chorar? Gritar? Regurgitar? Implorar? Vomitar? Engano-me quando penso assim. Vontade de amar. Lembranças de um pôr do sol quando sodomia não era sevícia. Quando três, quatro, uma guarnição sorria mais que se bronzeava. E se algum dia fui um garotinho desses que se escondem debaixo da cama, é porque acreditei que o desejo poderia me salvar. Acreditei que todas as múltiplas formas eram verdadeiras ou que se tratava apenas de uma brincadeira infantil, mas ele era adulto (mas, eu gostava). Ele bem mais forte do que eu e por isso mesmo. Me erguia, me jogava para cima. Aceitava qualquer palavrão saído daquela boca suja. Virilha fedida. Pé podre. Quem arranharia meu espelho quando eu deixasse as dependências da escola? Podia andar sozinho pelas ruas esburacadas de tanto levar enxurrada na cara. Todos sabiam quem eu era. Os marginais o temiam. Qual o professor atrever-se-ia a recusar minhas pesquisas não solicitadas? As aulas de poesia estavam garantidas. E da janela da sala de aula eu via o portão se abrir, o Escolar. A segurança permaneceria sempre ao meu lado, tomando conta das crianças, dos adolescentes, do patrimônio, do corpo docente. Aquele olhar concupiscente. Papai me deixava sozinho em casa. Eu que me virasse com o almoço e como eu adorava me virar. Eu sabia muito bem o que queria. Me achava o adulto que sabia de coisas que os outros meninos apenas especulavam. Eu lhes narrava detalhes de como era e de como não era. Embora a densa fumaça irritasse nossos olhos. Todas faziam questão de mantê-los bem abertos. Completamente atônitos. A fantasia de sorvete derretia-se antes do meio-dia. Me consideravam o rei.

2 comentários:

  1. adorei como ficou no final. um puta escritor vc é.
    abração

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  2. rss... Vc gostando é o que importa. Fiquei muito feliz em saber disso. Me deu um novo gás.

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