2 de abr. de 2016

               Quando se acorda de madrugada sem sono, temos a opção ficar rolando na cama de um lado para o outro, a procura de uma posição confortável, ou podemos nos levantar. O dia começa cedo para quem sofre de insônia. Haverá sempre pratos e talhares, copos e panelas em cima da pia para nos divertir. Haverá sempre um filé de peixe empanado na geladeira. A manteiga foi clarificada, a gema coada, o fervor da água ainda se faz presente no ar. Tanto carinho em meio de tantas promessas. Sabemos, elas jamais serão cumpridas. Ao menos, houve uma boa intenção. A alma não é pequena. Então, vale a pena. Quem quer subir no alto da serra, tem que aprender a respirar debaixo d'água sem equipamentos. Deus na força do vento se manifesta, para que possamos brincar de soltar pipa. Há sorvete de ameixa no congelador e a calda  de rosas brancas não ficou amarga. 
                 Um barulho me assusta. Era o cadela querendo entrar? Não. Era um gato querendo sair. Preto. Então, está perdoado. Nós bem sabemos como são tratados os gatos pretos.
                Outro barulho. É a notificação das redes sociais que me esqueci de desativar.  A essa hora, em Frankfurt, o executivo está pulando na piscina. Estava tomando um café. O meu, quero sem açúcar, sem creme e sem leite. O que puder ser puro, que seja. Não vou incomodá-lo. Minhas lembranças ainda são suficientes para alimentar meu amor-próprio. Rascunho no guardanapo, uma bibliografia. Mania de listas. Quem tem mania é louco. Eu era louco por aqueles lábios vermelhos que de cereja não tinham nada. "Os Diários de Virgínia Woolf",  "Os Diários de Sylvia Plath", "Os Diários de Franz Kafka", "Os Diários de Jack Kerouac", "El Diario de Anaïs Nin", "Brecht, Bertolt. Diário de Trabalho, V.1"
                Ando de mãos dados e pé atados com a minha  restrição linguística. Enquanto uma língua global não me resgata, vou me socializando no dialeto da periferia de uma grande cidade destruída por uma inundação. Não há ninguém na rua, mesmo assim ela segue iluminada. 
                 Volto ao quarto. Ondes estão meus chinelos? A psicologia do Reich caído atrás da cama me ensina duas coisas: não se deve ler nada antes de dormir e não se deve discutir com jornalistas. 
                Tenho certeza que lá no Senado, você não teria coragem de chegar gritando "Hail Hitler! Seu capitão do mato! Você está sendo racista. Estou brincando contigo. Vamos brincar de índio? Você se deita no chão e eu te jogo álcool. Se preferires, te amarro de costas e te violento. Você não tem senso de humor. O meu humor é um ácido que alimenta minha inteligência, se ponha para fora da loja, antes que eu quebre essa jarra de cristal polonês na tua cabeça. Do prejuízo vou fazer lucro e um exercício prático de manipulação das massas. 
              Estaria para sempre condenado a me lembrar do jornalista que me socorreu quando fiquei preso no elevador. Do alto do prédio observamos a avenida refletindo a luz da constelação de Capricórnio. No espelho d'água, roubamos libras esterlinas, nos comprometendo um dia a depositá-las no cofre do  Museu Britânico de Londres. À sombra das palmeiras, juramos nunca mais tomar remédio para dormir. De agora em diante, seríamos escritores notívagos.  

N.E.: Texto revisado em 20 de setembro de 2020. Do original só aproveitamos a espinha dorsal. Ideia inicial intacta. 

1 de abr. de 2016

  A crônica do dia seria sobre pombos devorando  falcões (revertendo toda lógica cartesiana), muito embora preferíamos estar perdido no turbilhão do revés. Solta o corpo, não vai ter golpe. Onde estava eu ontem à noite? Lavando o carro. O barro era prova do crime. A vida não é feita de trilhas que de tão sinuosas se tornaram retas.   Quando não há assunto, o assunto passa a ser a falta de. A ausência de metas   pulsa nas nossas veias e artérias. Elas vicejam por encantos desencontrados e vicejar é o jeito que eu conseguir dizer: amor, eu te amo. Mais criptografado e clandestino do que isso, não consigo. Sei que pegarás no ar a referência, porque és meu querido diário. Das crônicas faço um poema e do poema uma música sem melodia. Queria o querer na mais dulcíssima razão, sem elipses, sem me esquecer dos verbos, com todas as vírgulas e ponto e vírgulas no lugares corretos. Encontro uma autêntica desilusão. O pronome me escapou, o adjetivo não faz sentido. Vamos viver de advérbios.  Quer chocolate? (De tão retórica, sei a resposta) Ele é amargo, como a vida tem, saborosamente, sido. Se você não tem o que dizer, cala-se de uma vez por todas. Se as formas de expressão artísticas não lhe inspiram a criação, cala-se de uma vez por todas. Ao contemplar o Abaporu, percebo que a microcefalia não é um doença de hoje. Uma sincera vontade de fazer uma sopa de palma me brota do coração. Tem gosto de quê? Prova. É abril. Vamos tourear,  quem  sabe ainda  sei manejar a capa e a espada. Ubapuru era o nome da pomba.