Bom dia, DiCla!
O ponteiro dos
minutos corre em direção contrária, aqui são 04:20. Queria estar caminhando pelas
ruas da Babilônia. Depois que inventaram GPS ninguém mais se perdeu. Quem se
perdeu, não tinha personalidade nem caráter, borderline de tão cafajeste.
Aproximo-me o mais perto possível de ti para lhe contar: a meta passou a ser
escalar o espinhaço do diabo.
Estás
surpreso, não? Eu falando em metas. Depois que os ovos racham, as
tartaruguinhas seguem para o oceano Atlântico, cruzá-lo foi tua promessa. Eu
preferi beijar teus pés. Tu insistias numa viagem pelo mundo. Quero um diário
de viagem com direito a fotografias, vídeos e souvenirs. Menos, DiCla. Quero
sentir o teu cheiro em minhas mãos. Rir do sorriso de quem passou geleia de
goiaba na minha bolacha, comer o papaya com as sementes, agradecer o nascer do
Sol.
Chave
criptográfica, ok. Planejamento, ok. Fofoca, ok. (O funk eco na madrugada) Se precisares de mais alguma
coisa me avisa por telepatia. As aulas de musculação valeu todo o investimento
e tu com medo da quinoa. Para que anabolizantes esteroides, quando arroz negro
presta o mesmo serviço. A mente
venceu o corpo e juntos perdemos uma aposta.
Preciso saber
da tua opinião sobre frutas. Tomate é um fruto, serve também. Talvez, eu seja
bonzinho e substitua tomate (muito óbvio) por maçã. Gala, não. Verde. O
objetivo é dar trabalho para os inspetores da PF. Só mesmo tu para me fazeres
comer uma feijoada de rua, um prato feito com farofa de pimenta malagueta. Um prato
de rosbife frio custa mil reais? Como tu és ingênuo, companheiro; como eu sou
inocente. Ao observar, os estranhos comendo aprendi muito mais sobre diplomacia
do que os manuais do Rio Branco me ensinaram.
Aliás, tu
precisavas ver o fricassé me explicando como estava sendo a colheita da uva. Fiz
questão de desligar meu smartphone. Diante de uma constelação de notáveis
selamos um acordo. Quente, não vou
comer. Frio, não vou servir. Tinha eu um ás de copa e um sete de espada e
o Frica duas damas. Ele me desafiou, mandei descer o jogo. Ele recuou, cruzou
as pernas, coçou o queixo e se levantou, com a desculpa de beber de um copo
d’água. Copos de plásticos, mas vestia
Armani.
Deite-me na
cama feliz de tão resolvido. Embora, minutos antes, tenha sido advertido pela maçã verde que desse cacho de
uva, eu não chuparia nenhuma. Somente aquilo que me servirem. Óh, DiCla! Os
feirantes desconhecem o poder do jejum intermitente. São Rafael é por nós. Num
vinhedo na serra do Rio Grande aprendi a laçar potro selvagem.
O arroz estava
soltinho, se agarrando às memórias afetivas dos anos de chumbo. Eu era sobrinho
de embaixador, meu padrinho porteiro do bolo de noiva. Naqueles salões aprendi
a amar a arte modernista Sou filho de poeta e sempre serei neto de cafetina. Sim.
Minha tia-avó foi mais cuidadosa comigo, do que a mãe da minha mãe. Esse, ai, vai ser gente! Não me volte aqui nem
sozinho. O pai pode ter sido irresponsável na minha educação, como tu bem
sabes, DiCla (está tudo registrado nas folhas avulsas de 83), mas jamais me
deixou andar com uma pistola na cintura. Quando eu queria brincar de água, a gente ia jogar
moedas no espelho d’água do palácio cuja princesa nunca aparecia na janela. O
arroz, elegantemente, voltou ao assunto. Ninguém sabe de nada. Eu sei de tudo.
Testemunhas oculares filmaram o crime. Elas estão dispostas de depor ao meu favor, se forem chamadas pelo juiz ao tribunal.
Tu estás
perplexo, querido diário? Não me cabe julgar ninguém. Sou parte envolvida.
P.S.: A maçã
estava brocada de pulgão. Cantei a música do Chico, imitando Maria Bethânia. O
olhar vale mais que a palavra.
P.S.S: Alpha
embarcou na sua nave espacial sem se despedir de mim. Ele terá um capítulo para
chamar de seu. Toda intimidade será castigada. Aquela nota de cinquenta dólares
é mais suja que maçaneta de porta de sacristia. Hipótese corroborada.
* * * * *
Meu memorialista acabou de sair
da análise com uma sensação de que ele escreve para que o leitor sinta pena
dele e faça o que ele quer. Ora, ora, autopiedade é um vício. O que o sujeito fez do
que a vida fez dele? Sentou-se no meio-fio e chorou. Admiro escritores que além
de escreverem diários, escreveram romances, peças de teatro e poemas. Estes tinham
coragem, por isso tornaram-se referência. Quando a vida for irônica, seja
sarcástico #DicaDoDicla. Um dia vamos passar o rascunho a limpo, por enquanto fica como está.
inspirado em "Sing Along", Jessica Leigh