22 de set. de 2020

Bom dia, DiCla!

O ponteiro dos minutos corre em direção contrária, aqui são 04:20. Queria estar caminhando pelas ruas da Babilônia. Depois que inventaram GPS ninguém mais se perdeu. Quem se perdeu, não tinha personalidade nem caráter, borderline de tão cafajeste. Aproximo-me o mais perto possível de ti para lhe contar: a meta passou a ser escalar o espinhaço do diabo.             

Estás surpreso, não? Eu falando em metas. Depois que os ovos racham, as tartaruguinhas seguem para o oceano Atlântico, cruzá-lo foi tua promessa. Eu preferi beijar teus pés. Tu insistias numa viagem pelo mundo. Quero um diário de viagem com direito a fotografias, vídeos e souvenirs. Menos, DiCla. Quero sentir o teu cheiro em minhas mãos. Rir do sorriso de quem passou geleia de goiaba na minha bolacha, comer o papaya com as sementes, agradecer o nascer do Sol.

Chave criptográfica, ok. Planejamento, ok. Fofoca, ok. (O funk eco na madrugada) Se precisares de mais alguma coisa me avisa por telepatia. As aulas de musculação valeu todo o investimento e tu com medo da quinoa. Para que anabolizantes esteroides, quando arroz negro presta o mesmo serviço.      A mente venceu o corpo e juntos perdemos uma aposta.

Preciso saber da tua opinião sobre frutas. Tomate é um fruto, serve também. Talvez, eu seja bonzinho e substitua tomate (muito óbvio) por maçã. Gala, não. Verde. O objetivo é dar trabalho para os inspetores da PF. Só mesmo tu para me fazeres comer uma feijoada de rua, um prato feito com farofa de pimenta malagueta. Um prato de rosbife frio custa mil reais? Como tu és ingênuo, companheiro; como eu sou inocente. Ao observar, os estranhos comendo aprendi muito mais sobre diplomacia do que os manuais do Rio Branco me ensinaram.

Aliás, tu precisavas ver o fricassé me explicando como estava sendo a colheita da uva. Fiz questão de desligar meu smartphone. Diante de uma constelação de notáveis selamos um acordo. Quente,  não vou comer. Frio,  não vou servir.  Tinha eu um ás de copa e um sete de espada e o Frica duas damas. Ele me desafiou, mandei descer o jogo. Ele recuou, cruzou as pernas, coçou o queixo e se levantou, com a desculpa de beber de um copo d’água.  Copos de plásticos, mas vestia Armani.

Deite-me na cama feliz de tão resolvido. Embora, minutos antes, tenha sido  advertido pela maçã verde que desse cacho de uva, eu não chuparia nenhuma. Somente aquilo que me servirem. Óh, DiCla! Os feirantes desconhecem o poder do jejum intermitente. São Rafael é por nós. Num vinhedo na serra do Rio Grande aprendi a laçar potro selvagem.

O arroz estava soltinho, se agarrando às memórias afetivas dos anos de chumbo. Eu era sobrinho de embaixador, meu padrinho porteiro do bolo de noiva. Naqueles salões aprendi a amar a arte modernista Sou filho de poeta e sempre serei neto de cafetina. Sim. Minha tia-avó foi mais cuidadosa comigo, do que a mãe da minha mãe.  Esse, ai, vai ser gente! Não me volte aqui nem sozinho. O pai pode ter sido irresponsável na minha educação, como tu bem sabes, DiCla (está tudo registrado nas folhas avulsas de 83), mas jamais me deixou andar com uma pistola na cintura.  Quando eu queria brincar de água, a gente ia jogar moedas no espelho d’água do palácio cuja princesa nunca aparecia na janela. O arroz, elegantemente, voltou ao assunto. Ninguém sabe de nada. Eu sei de tudo. Testemunhas oculares filmaram o crime. Elas estão dispostas de depor ao meu favor, se forem chamadas pelo juiz ao tribunal. 

Tu estás perplexo, querido diário? Não me cabe julgar ninguém. Sou parte envolvida.

P.S.: A maçã estava brocada de pulgão. Cantei a música do Chico, imitando Maria Bethânia. O olhar vale mais que a palavra.

P.S.S: Alpha embarcou na sua nave espacial sem se despedir de mim. Ele terá um capítulo para chamar de seu. Toda intimidade será castigada. Aquela nota de cinquenta dólares é mais suja que maçaneta de porta de sacristia.  Hipótese corroborada.

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             Meu memorialista acabou de sair da análise com uma sensação de que ele escreve para que o leitor sinta pena dele e faça o que ele quer. Ora, ora, autopiedade é um vício. O que o sujeito fez do que a vida fez dele? Sentou-se no meio-fio e chorou. Admiro escritores que além de escreverem diários, escreveram romances, peças de teatro e poemas. Estes tinham coragem, por isso tornaram-se referência. Quando a vida for irônica, seja sarcástico #DicaDoDicla. Um dia vamos passar o rascunho a limpo, por enquanto fica como está. 


                inspirado em "Sing Along", Jessica Leigh

 

 

 

 

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