17 de out. de 2006

Quando sentir finalmente por minha falta, estarei debaixo da cama lendo livros proibidos que me possibilitem refazer o caminho de volta. Desculpe-me leitores a fraqueza das metáforas encontradas na poeira dos polens. Asfixia hiperbólica me evapora em tardes ímpares, por isso, aquilo. Ele só me machucava, com a minha permissão. Bastava encostar o cotovelo, levantava-se de cima de mim. Bufando. Com raiva. Encarando nuvens disformes. (Eram cavalinhos.) Tinha vontade de se jogar da varanda? Nunca saberemos. Não deu tempo. Sentou-se ao lado esquerdo da cama. Silêncio. Esperava pela mão escabrosa descer minhas vértebras como se fossem escadas. Meu corpo de bruços queria apenas descansar. Olhos fechados. “Tentava me lembrar do sonho de hoje de manhã”. Os tempos não se conjugavam mais. Azar de quem queria estar ao lado do mestre-de-armas. O peso do corpo que agora me era alheio pressionou minhas costelinhas antes mordiscadas. (Se aquilo se chamara carinho, sobreviveria eu anos trancado no porão do maníaco que mora ao lado dos meus pensamentos.) Tirou o fone do gancho. Desemaranhou o fio do aparelho como se estivesse se preparando para mais uma vez extrair a verdade de um seqüestrador da filha do superintendente.
— Eu gostaria de fazer um pedido.
— ...
— Quero uma pizza portuguesa e outra aos quatro queijos.
— Pede um suco de cupuaçu para mim.
— Vocês servem suco?
— ...
— Traga cerveja, por favor. A do frigobar acabou.
— Pede um refri.
— Pode ser. E uma coca light.
A intimidade com que ele falara sabe-lá-Deus-com-quem me tirou o apetite.
— Posso?
— Fica à vontade.
O último pedaço de pizza a passear por uma boca que eu não mais reconhecia. Largou o garfo e a faca sobre o prato com uma insolência intencionalmente irritante. Levantou-se da cama, indo na direção do cabide de madeira desbotado. Uma mão de verniz lhe faria bem. Vasculhou os bolsos da calça à procura do maço de cigarros. Os bolsos do paletó. Observá-lo movimentando-se, lembrava-me os rinocerontes do zoológico brigando por uma poça d’água.
— Tive uma idéia. Joga-me esse cinto.
— Por favor.
— Por favor, você poderia me jogar o cinto.
— Posso não.
E refugiou-se na varanda. Encostado no parapeito da sacada. Contemplava a linha de estrelas que delimitavam o horizonte, como se nada tivesse acontecido, ignorando-me, como eu vinha lhe ignorando há semanas. Eu tinha motivo. Ele apenas se vingava.

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