Uma imagem nunca será capaz de transmitir o alívio que ela estava sentindo. E podem chamar Milcho Manchevski.
Largou os cartões de natal em cima da mesa. Esqueceu o estabilizador ligado. Saiu descabelada pela casa, tropeçando nos brinquedos do caçula espalhados pela cozinha, com a gaiola do canário na mão. (Presente do homem lhe fazia gozar todos os dias por telefone.) Foi ao vizinho que lhe devia favores, pedir que cuidasse do seu filhinho, até seu retorno. "Eu sabia que aquele velho branco, gordo, peludo e barbudo algum dia me seria útil."
Ela estava em êxtase, sob efeito da espera dos últimos onze meses. (Ele soube induzi-la). Um comprimido, um gole d'água; mais um, outro gole; o último e pegou uma banana na fruteira. Comer uma fruta, lhe traria a certeza de que os comprimidos chegariam ao estômago. Foi ao banheiro da empregada e jogou suas cartelas de esperança no vaso. "Adeus, balinhas. Feliz Natal para vocês também. Deu descarga. "Nunca mais nos veremos." Olhou-se espelho, ajeitou a franja. "Já pensou em ser morena?" Passou pela cozinha, sem se comover com as louças ensaboadas, que ainda lhe aguardavam. Arrumou tudo de qualquer maneira e se despediu do escorredor de pratos, mandando beijo. Feliz Natal, meu amor! Para você também, phalaenopsis, Feliz Natal! (Regou a orquídea por desencargo de consciência). Boas Festas, Geladeira! Felicidades, Seu Fogão! Olhe lá hein, Dona Pia, não exagere na gordura; se despeça do tanque por mim. Foi fazer as malas.
No Rádio Táxi, demoravam a atender. "Alô? Bom dia! Por favor, eu gostaria de falar com o Ramirez." Olhou para o guarda-roupa. Franziu as sobrancelhas. Levaria apenas o chinelinho preto. (Outro presente do amante que ela só conhecia por fotos, voz e webcam). Pegou estojo de maquiagem (motivo de tantas brigas) e o colocou debaixo do travesseiro da cama da irmã. "Não vou mais precisar disso." Desistiu de levar mala. "Nem valise." O charme seria desembarcar sem nenhuma bagagem, além da edição de luxo, em original, D' El Ingenioso Hidalgo de Don Quijote de la Mancha. (Presente de quem? A não ser do homem que conhecia seus sonhos, seus segredos, suas pretensões.) "Ele me apoia." É por você que estou lutando contra esses moinhos-de-ventos. -- dizia a dedicatória escrita atrás da fotografia. Cheirou a contra-capa como se fosse o pescoço dele. Respirou fundo. Acreditava que não bastava ser bonita, gostosa, sedutora e elegante. Tinha que ser culta, mesmo que não fosse inteligente. Abraçou-se com o livro.
Banho tomado. Cabelos presos. Saiu apressada em direção ao local combinado com o amigo taxista. Se trancara a casa, não se lembraria. Pensava apenas em embarcar, na confirmação do check-in. Enquanto aguardava, em pé, em frente a agência bancária, tirou da bolsa o caderninho de capa de couro de búfalo e escreveu: "22 de dezembro de 2005." Lembrou-se imediatamente da avó; do velório, dos crisântemos brancos, da vontade de se jogar na poça de lama, da rama de philodendron, que quase foi esquecida. "Dona Virgínia, não se orgulharia de mim." Escreveu alguns versos com letra miúda, trêmula, ágil Fechou o caderno, sem ainda guardá-lo na bolsa. "Vou fazê-lo vir me buscar." Tarde demais. O táxi freara a poucos centímetros dela: "Oi, Gostosa!" Ela teve certeza que deveria abandonar aquela vida. Entrou no táxi, pediu que a levasse ao aeroporto. Contou-lhe a novidade.
Ofegava, se confundia, trocava data e lugares. Ele apenas balançava a cabeça: "Você, é doida, gata!" Mostrou-lhe as passagens para provar-lhe o que estava dizendo. Ele estacionou no acostamento. Pisca-alerta ligado. "Vai ter coragem de deixar a gente?" Ela prometera escrever todos os dias, sem censura ou vergonha. Enviaria-lhe fotografias nas quais ela estaria mergulhando num mar de recifes azuis. Ele pigarreou. "Se você nunca deixou-se fotografar, porque faria agora?" Ela estava quase arrependida de tê-lo chamado, quando ele contornou o balão do aeroporto. Ao estacionarem no desembarque, ele ainda lhe perguntou: "Vai mesmo?" Ela não lhe respondeu, preferiu beijar-lhe. Um longo, melado, profundo, beijo de língua, enquanto acariciava-lhe o zíper da calça de brin bege. "Quando você volta?" Ela já estava longe. "Antes do dia quinze", gritou, "Feliz Natal!" Por ela, poderia ser nunca mais. Rebolando mais do que de costume, encaminhou-se a balcão de atendimento. A moça pediu que se apressasse. Todos já haviam embarcado. Nem ouviu a atendente desejar-lhe boas festas.